ê importante dizer alguma coisa sobre o fato de O Alquimista ser um
livro simbÕlico, diferente de O DiÂrio de um Mago, que foi um trabalho de
nÇo-ficÚÇo.
Durante onze anos de minha vida estudei Alquimia. A simples idÊia de
transformar metais em ouro, ou de descobrir o Elixir da Longa Vida, j era
fascinante demais para passar despercebida a qualquer iniciante em Magia.
Confesso que o Elixir da Longa Vida me seduzia mais: antes de entender e
sentir a presenÚa de Deus, a idÊia de que tudo ia acabar um dia era
desesperadora. De maneira que, ao saber da possibilidade de conseguir um
lÎquido capaz de prolongar por muitos anos minha existËncia, resolvi
dedicar- me de corpo e alma Á sua fabricaÚÇo.
Era uma Êpoca de grandes transformaÚÈes sociais o comeÚo dos anos
setenta e nÇo havia ainda publicaÚÈes sÊrias a respeito de Alquimia.
Comecei, como um dos personagens do livro, a gastar o pouco dinheiro que
tinha na compra de livros importados, e dedicava muitas horas do meu dia ao
estudo da sua simbologia complicada. Procurei duas ou trËs pessoas no Rio de
Janeiro que se dedicavam seriamente Á Grande Obra, e elas se recusaram a me
receber. Conheci tambÊm muitas outras pessoas que se diziam alquimistas,
possuÎam seus laboratÕrios, e prometiam me ensinar os segredos da Arte em
troca de verdadeiras fortunas; hoje entendo que elas nada sabiam daquilo que
pretendiam ensinar.
Mesmo com toda a minha dedicaÚÇo, os resultados eram absolutamente
nulos. NÇo acontecia nada do que os manuais de Alquimia afirmavam em sua
complicada linguagem. Era um sem-fim de sÎmbolos, de dragÈes, leÈes, sÕis,
luas e mercßrios, e eu sempre tinha a impressÇo de estar no caminho errado,
porque a linguagem simbÕlica permite uma gigantesca margem de equÎvocos. Em
1973, j desesperado com a ausËncia de progresso, cometi uma suprema
irresponsabilidade. Nesta Êpoca eu era contratado pela Secretaria de
EducaÚÇo de Mato Grosso para dar aulas de teatro naquele estado, e resolvi
utilizar meus alunos em laboratÕrios teatrais que tinham como tema a TÂboa
da Esmeralda. Esta atitude, aliada a algumas incursÈes minhas nas Âreas
pantanosas da Magia, fizeram com que no ano seguinte eu pudesse experimentar
na prÕpria carne a verdade do provÊrbio: "Aqui se faz, aqui se paga". Tudo a
minha volta ruiu por completo.
Passei os prÕximos seis anos de minha vida numa atitude bastante cÊtica
com relaÚÇo a tudo que dissesse respeito Á Ârea mÎstica. Neste exÎlio
espiritual, aprendi muitas coisas importantes: que sÕ aceitamos uma verdade
quando primeira a negamos do fundo da alma, que nÇo devemos fugir de nosso
prÕprio destino, e que a mÇo de Deus Ê infinitamente generosa, apesar de Seu
rigor.
Em 1981, conheci RAM e o meu Mestre, que iria conduzir-me de volta ao
caminho que est traÚado para mim. E enquanto ele me treinava em seus
ensinamentos, voltei a estudar Alquimia por minha prÕpria conta. Certa
noite, enquanto conversÂvamos depois de uma exaustiva sessÇo de telepatia,
perguntei porque a linguagem dos alquimistas era tÇo vaga e tÇo complicada.
Existem trËs tipos de alquimistas disse meu Mestre. Aqueles que
sÇo vagos porque nÇo sabem o que estÇo falando; aqueles que sÇo vagos porque
sabem o que estÇo falando, mas sabem tambÊm que a linguagem da Alquimia Ê
uma linguagem dirigida ao coraÚÇo, e nÇo Á razÇo.
E qual o terceiro tipo? perguntei.
Aqueles que jamais ouviram falar em Alquimia, mas que conseguiram,
atravÊs de suas vidas, descobrir a Pedra Filosofal.
E com isto, meu Mestre que pertencia ao segundo tipo resolveu me
dar aulas de Alquimia. Descobri que a linguagem simbÕlica, que tanto me
irritava e me desnorteava, era a ßnica maneira de se atingir a Alma do
Mundo, ou o que Jung chamou de "inconsciente coletivo". Descobri a Lenda
Pessoal, e os Sinais de Deus, verdades que meu raciocÎnio intelectual se
recusava a aceitar por causa de sua simplicidade. Descobri que atingir a
Grande Obra nÇo Ê tarefa de poucos, mas de todos os seres humanos sobre a
face da Terra. ê claro que nem sempre a Grande Obra vem sob a forma de um
ovo e de um frasco com lÎquido, mas todos nÕs podemos sem qualquer sombra
de dßvida mergulhar na Alma do Mundo.
Por isso, "O Alquimista" Ê tambÊm um texto simbÕlico. No decorrer de
suas pÂginas, alÊm de transmitir tudo o que aprendi a respeito, procuro
homenagear grandes escritores que conseguiram atingir a Linguagem Universal:
Hemingway, Blake, Borges (que tambÊm utilizou a histÕria persa para um de
seus contos), Malba Tahan, entre outros.
Para completar este extenso prefÂcio, e ilustrar o que meu Mestre
queria dizer com o terceiro tipo de alquimistas, vale a pena recordar uma
histÕria que ele mesmo me contou no seu laboratÕrio.
Nossa Senhora, com o Menino Jesus em seus braÚos, resolveu descer Á
Terra e visitar um mosteiro. Orgulhosos, todos os padres fizeram uma grande
fila, e cada um chegava diante da Virgem para prestar sua homenagem. Um
declamou belos poemas, outro mostrou suas iluminuras para a BÎblia, um
terceiro disse o nome de todos os santos. E assim por diante, monge apÕs
monge, homenageou Nossa Senhora e o Menino Jesus.
No ßltimo lugar da fila, havia um padre, o mais humilde do convento,
que nunca havia aprendido os sÂbios textos da Êpoca. Seus pais eram pessoas
simples, que trabalhavam num velho circo das redondezas, e tudo que lhe
haviam ensinado era atirar bolas para cima e fazer alguns malabarismos.
Quando chegou sua vez, os outros padres quiseram encerrar as
homenagens, porque o antigo malabarista nÇo tinha nada de importante para
dizer, e podia desmoralizar a imagem do convento. Entretanto, no fundo do
seu coraÚÇo, tambÊm ele sentia uma imensa necessidade de dar alguma coisa de
si para Jesus e a Virgem.
Envergonhado, sentindo o olhar reprovador de seus irmÇos, ele tirou
algumas laranjas do bolso e comeÚou a jogÂ-las para cima, fazendo
malabarismos, que era a ßnica coisa que sabia fazer.
Foi sÕ neste instante que o Menino Jesus sorriu, e comeÚou a bater
palmas no colo de Nossa Senhora. E foi para ele que a Virgem estendeu os
braÚos, deixando que segurasse um pouco o menino.
O AUTOR
Para J.
Alquimista que conhece e utiliza os segredos da Grande Obra.
Indo eles pelo caminho, entraram em um certo povoado. E certa mulher,
chamada Marta, hospedou-o na sua casa.
Tinha ela uma irmÇ, chamada Maria, que sentou-se aos pÊs do Senhor, e
ficou ouvindo seus ensinamentos.
Marta agitava-se de um lado para o outro, ocupada em muitos serviÚos.
EntÇo aproximou-se de Jesus e disse: Senhor! NÇo te importas de que
eu fique a servir sozinha? Ordena a minha
irmÇ que venha ajudar-me!
Respondeu-lhe o Senhor:
Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas.
"Maria, entretanto, escolheu a melhor parte, e esta nÇo lhe serÂ
tirada."
LUCAS, 10; 38-42
PRõLOGO
O Alquimista pegou um livro que alguÊm na caravana havia trazido. O
volume estava sem capa, mas conseguiu identificar seu autor: Oscar Wilde.
Enquanto folheava suas pÂginas, encontrou uma histÕria sobre Narciso.
O Alquimista conhecia a lenda de Narciso, um belo rapaz que todos os
dias ia contemplar sua prÕpria beleza num lago. Era tÇo fascinado por si
mesmo que certo dia caiu dentro do lago e morreu afogado. No lugar onde
caiu, nasceu uma flor, que chamaram de narciso.
Mas nÇo era assim que Oscar Wilde acabava a histÕria.
Ele dizia que quando Narciso morreu, vieram as OrÊiades deusas do
bosque e viram o lago transformado, de um lago de Âgua doce, num c×ntaro
de lÂgrimas salgadas.
Por que vocË chora? perguntaram as OrÊiades.
Choro por Narciso disse o lago
Ah, nÇo nos espanta que vocË chore por Narciso continuaram elas.
Afinal de contas, apesar de todas nÕs sempre corrermos atrÂs dele pelo
bosque, vocË era o ßnico que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua
beleza.
Mas Narciso era belo? perguntou o lago.
Quem mais do que vocË poderia saber disso? responderam, surpresas,
as OrÊiades.
Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruÚava todos os
dias.
O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:
Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que Narciso era
belo.
"Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre
minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha prÕpria beleza
refletida".
"Que bela histÕria", disse o Alquimista.
O rapaz chamava-se Santiago. Estava comeÚando a escurecer quando chegou
com seu rebanho diante de uma velha igreja abandonada. O teto tinha
despencado h muito tempo, e um enorme sicÆmoro havia crescido no local que
antes abrigava a sacristia.
Resolveu passar a noite ali. Fez com que todas as ovelhas entrassem
pela porta em ruÎnas, e entÇo colocou algumas tÂbuas de modo que elas nÇo
pudessem fugir durante a noite. NÇo haviam lobos naquela regiÇo, mas certa
vez um animal havia escapado durante a noite, e ele gastara todo o dia
seguinte procurando a ovelha desgarrada.
Forrou o chÇo com seu casaco e deitou-se, usando o livro que acabara de
ler como travesseiro. Lembrou-se, antes de dormir, que precisava comeÚar a
ler livros mais grossos: demoravam mais para acabar e eram travesseiros mais
confortÂveis durante a noite.
Ainda estava escuro quando acordou. Olhou para cima, e viu que as
estrelas brilhavam atravÊs do teto semidestruÎdo.
"Queria dormir um pouco mais", pensou ele. Tivera o mesmo sonho da
semana passada, e outra vez acordara antes do final.
Levantou-se e tomou um gole de vinho. Depois pegou o cajado e comeÚou a
acordar as ovelhas que ainda dormiam. Ele havia reparado que, assim que
acordava, a maior parte dos animais tambÊm comeÚava a despertar. Como se
houvesse alguma misteriosa energia unindo sua vida Á vida daquelas ovelhas
que h dois anos percorriam com ele a terra, em busca de Âgua e alimento.
"Elas j se acostumaram tanto a mim que conhecem meus horÂrios", disse em
voz baixa. Refletiu um momento, e pensou que podia ser tambÊm o contrÂrio:
ele que havia se acostumado ao horÂrio das ovelhas.
Haviam certas ovelhas, porÊm, que demoravam um pouco mais para
levantar. O rapaz acordou uma a uma com seu cajado, chamando cada qual pelo
seu nome. Sempre acreditara que as ovelhas eram capazes de entender o que
ele falava. Por isso costumava Ás vezes ler para elas os trechos de livros
que o haviam impressionado, ou falar da solidÇo e da alegria de um pastor no
campo, ou comentar sobre as ßltimas novidades que via nas cidades por onde
costumava passar.
Nos ßltimos dois dias, porÊm, seu assunto tinha sido praticamente um
sÕ: a menina, filha do comerciante, que morava na cidade por onde ia chegar
daqui a quatro dias. Tinha estado apenas uma vez lÂ, no ano anterior. O
comerciante era dono de uma loja de tecidos, e gostava sempre de ver as
ovelhas tosquiadas na sua frente, para evitar falsificaÚÈes. Um certo amigo
tinha indicado a loja, e o pastor levou l suas ovelhas.
"Preciso vender alguma lÇ", disse para o comerciante.
A loja do homem estava cheia, e o comerciante pediu que o pastor
esperasse atÊ o entardecer. Ele sentou-se na calÚada da loja e tirou um
livro do alforje.
NÇo sabia que os pastores sÇo capazes de ler livros disse uma voz
feminina ao seu lado.
Era uma moÚa tÎpica da regiÇo de Andaluzia, com seus cabelos negros
escorridos, e os olhos que lembravam vagamente os antigos conquistadores
mouros.
ê porque as ovelhas ensinam mais que os livros respondeu o rapaz.
Ficaram conversando por mais de duas horas. Ela contou que era filha do
comerciante, e falou da vida na aldeia, onde cada dia era igual ao outro. O
pastor contou dos campos de Andaluzia, das ßltimas novidades que viu nas
cidades onde visitara. Estava contente por nÇo precisar conversar sempre com
as ovelhas.
Como aprendeu a ler? perguntou a moÚa a certa altura.
Como todas as outras pessoas respondeu o rapaz. Na escola.
E, se sabe ler, entÇo por que Ê apenas um pastor?
O rapaz deu uma desculpa qualquer para nÇo responder aquela pergunta.
Ele tinha certeza de que a moÚa jamais entenderia. Continuou a contar suas
histÕrias de viagem, e os pequenos olhos mouros abriam-se e fechavam-se de
espanto e surpresa. á medida que o tempo foi passando, o rapaz comeÚou a
desejar que aquele dia nÇo acabasse nunca, que o pai da moÚa ficasse ocupado
por muito tempo e o mandasse esperar por trËs dias. Percebeu que estava
sentindo uma coisa que nunca havia sentido antes: vontade de ficar morando
numa mesma cidade para sempre. Com a menina de cabelos negros, os dias nunca
seriam iguais.
Mas o comerciante finalmente chegou e mandou que ele tosquiasse quatro
ovelhas. Depois, pagou-lhe o que era devido, e pediu que voltasse no ano
seguinte.
Agora faltavam apenas quatro dias para chegar de novo Á mesma aldeia.
Estava excitado e ao mesmo tempo inseguro: talvez a menina j tivesse
esquecido. Por ali passavam muitos pastores para vender lÇ.
NÇo tem import×ncia disse o rapaz para as suas ovelhas. Eu tambÊm
conheÚo outras meninas em outras cidades.
Mas no fundo do seu coraÚÇo, ele sabia que tinha import×ncia. E que
tanto os pastores, como os marinheiros, como os caixeiro-viajantes, sempre
conheciam uma cidade onde havia alguÊm capaz de fazer com que esquecessem a
alegria de viajar solto pelo mundo.
O dia comeÚou a raiar e o pastor colocou as ovelhas seguindo em direÚÇo
ao sol. "Elas nunca precisam tomar uma decisÇo", pensou ele. "Talvez por
isso fiquem sempre juntos de mim". A ßnica necessidade que as ovelhas
sentiam era de Âgua e de alimento. Enquanto o rapaz conhecesse os melhores
pastos em Andaluzia, elas seriam sempre suas amigas. Mesmo que os dias
fossem todos iguais, com longas horas se arrastando entre o nascer e o
pÆr-do-sol; mesmo que elas jamais tivessem lido um sÕ livro em suas curtas
vidas, e nÇo conhecessem a lÎngua dos homens que contavam as novidades nas
aldeias. Elas estavam contentes com Âgua e alimento, e isto bastava. Em
troca, ofereciam generosamente sua lÇ, sua companhia, e de vez em quando
sua carne.
"Se hoje eu me tornasse um monstro e resolvesse matar uma por uma, elas
sÕ iam perceber depois que quase todo o rebanho tivesse sido exterminado",
pensou o rapaz. "Porque confiam em mim, e se esqueceram de confiar nos seus
prÕprios instintos. SÕ porque as conduzo ao alimento e Á comida".
O rapaz comeÚou a estranhar seus prÕprios pensamentos. Talvez a igreja,
com aquele sicÆmoro crescendo dentro, fosse mal-assombrada. Tinha feito com
que sonhasse um mesmo sonho pela segunda vez, e estava lhe dando uma
sensaÚÇo de raiva contra suas companheiras, sempre tÇo fiÊis. Bebeu um pouco
de vinho que havia sobrado do jantar na noite anterior, e apertou contra o
corpo o seu casaco. Ele sabia que daqui a algumas horas, com o sol a pino, o
calor seria tÇo forte que nÇo ia poder
conduzir as ovelhas pelo campo. Era a hora que toda a Espanha dormia no
verÇo. O calor durava atÊ a noite, e durante todo este tempo ele tinha que
ficar carregando o casaco. Entretanto, quando pensava em reclamar do peso,
sempre lembrava que por causa dele nÇo havia sentido frio de manhÇ.
"Temos que estar sempre preparados para as surpresas do tempo", pensava
entÇo ele, e sentia-se grato pelo peso do casaco.
O casaco tinha um motivo, e o rapaz tambÊm. Em dois anos pelas
planÎcies de Andaluzia ele j sabia de cor todas as cidades da regiÇo, e
esta era a grande razÇo de sua vida; viajar. Estava planejando explicar
desta vez Á menina porque um simples pastor sabe ler: havia estado atÊ os
dezesseis anos num seminÂrio. Seus pais queriam que ele fosse padre, e
motivo de orgulho para uma simples famÎlia camponesa, que trabalhava apenas
para comida e Âgua, como suas ovelhas. Estudou latim, espanhol, e teologia.
Mas desde crianÚa sonhava em conhecer o mundo, e isto era muito mais
importante do que conhecer Deus ou os pecados dos homens. Certa tarde, ao
visitar a famÎlia, havia tomado coragem e dito para seu pai que nÇo queria
ser padre. Queria viajar.
Homens de todo o mundo j passaram por esta aldeia, filho disse o
pai. VËm em busca de coisas novas, mas continuam as mesmas pessoas. VÇo
atÊ o morro conhecer o castelo e acham que o passado era melhor que o
presente. TËm cabelos louros ou pele escura, mas sÇo iguais aos homens de
nossa aldeia.
Mas nÇo conheÚo os castelos das terras de onde eles vËm retrucou o
rapaz.
Estes homens, quando conhecem nossos campos e nossas mulheres, dizem
que gostariam de viver para sempre aqui continuou o pai.
Quero conhecer as mulheres e as terras de onde eles vieram disse o
rapaz. Porque eles nunca ficam por aqui.
Os homens trazem a bolsa cheia de dinheiro disse mais uma vez o
pai. Entre nÕs, sÕ os pastores viajam.
EntÇo serei pastor.
O pai nÇo disse mais nada. No dia seguinte deu-lhe uma bolsa com trËs
antigas moedas de ouro espanholas.
Achei certo dia no campo. Iam ser da Igreja, como seu dote. Compre
seu rebanho e corra o mundo atÊ aprender que nosso castelo Ê o mais
importante, e nossas mulheres sÇo as mais belas.
E o abenÚoou. Nos olhos do pai ele leu tambÊm a vontade de correr o
mundo. Uma vontade que ainda vivia, apesar das dezenas de anos que ele a
tentou sepultar com Âgua, comida, e o mesmo lugar para dormir toda noite.
O horizonte se tingiu de vermelho, e depois apareceu o sol. O rapaz
lembrou-se da conversa com o pai e sentiu-se alegre; tinha j conhecido
muitos castelos e muitas mulheres (mas nenhuma igual Áquela que o esperava
em dois dias). Tinha um casaco, um livro que podia trocar por outro, e um
rebanho de ovelhas. O mais importante, entretanto, Ê que todo dia realizava
o grande sonho de sua vida; viajar. Quando cansasse dos campos de Andaluzia,
podia vender suas ovelhas e tornar-se marinheiro. Quando cansasse do mar,
teria conhecido muitas cidades, muitas mulheres, muitas oportunidades de ser
feliz.
"NÇo sei como buscam Deus no seminÂrio", pensou, enquanto olhava o sol
que nascia. Sempre que possÎvel, buscava um caminho diferente para andar.
Nunca havia estado naquela igreja antes, apesar de haver passado tantas
vezes por ali. O mundo era grande e inesgotÂvel, e se ele deixasse que as
ovelhas o guiassem apenas um pouquinho, ia terminar descobrindo mais coisas
interessantes. "O problema Ê que elas nÇo se dÇo conta de que estÇo fazendo
caminhos novos cada dia. NÇo percebem que os pastos mudaram, que as estaÚÈes
sÇo diferentes porque estÇo apenas ocupadas com Âgua e comida."
"Talvez seja assim com todos nÕs" pensou o pastor. "Mesmo comigo, que
nÇo penso em outras mulheres desde que conheci a filha do comerciante".
Olhou o cÊu, e pelos seus cÂlculos estaria antes do almoÚo em Tarifa. LÂ
poderia trocar seu livro por um volume mais grosso, encher a garrafa de
vinho, e fazer a barba e o cabelo; tinha que estar pronto para encontrar a
menina, e nÇo queria pensar na possibilidade de outro pastor ter chegado
antes dele, com mais ovelhas, para pedir sua mÇo.
"ê justamente a possibilidade de realizar um sonho que torna a vida
interessante", refletiu enquanto olhava novamente o cÊu e apressava o passo.
Tinha acabado de se lembrar que em Tarifa morava uma velha capaz de
interpretar sonhos. E ele tinha tido um sonho repetido aquela noite.
A velha conduziu o rapaz atÊ um quarto no fundo da casa, separado da
sala por uma cortina feita de tiras de plÂstico colorido. LÂ dentro tinha
uma mesa, uma imagem do Sagrado CoraÚÇo de Jesus, e duas cadeiras.
A velha sentou-se e pediu que ele fizesse o mesmo. Depois segurou as
duas mÇos do rapaz e rezou baixo.
Parecia uma reza cigana. O rapaz j havia encontrado muitos ciganos
pelo caminho; eles viajavam e entretanto nÇo cuidavam de ovelhas. As pessoas
diziam que a vida de um cigano era sempre enganar aos outros. Diziam tambÊm
que eles tinham pacto com demÆnios, e que raptavam crianÚas para servirem de
escravas em seus misteriosos acampamentos. Quando era pequeno, o rapaz
sempre tinha morrido de medo de ser raptado pelos ciganos, e este temor
antigo voltou enquanto a velha segurava suas mÇos.
"Mas existe a imagem do Sagrado CoraÚÇo de Jesus", pensou ele,
procurando ficar mais calmo. NÇo queria que sua mÇo comeÚasse a tremer e a
velha percebesse seu medo . Rezou um pai-nosso em silËncio.
Que interessante disse a velha, sem tirar os olhos da mÇo do rapaz.
E voltou a ficar quieta.
O rapaz estava ficando nervoso. Suas mÇos comeÚaram involuntariamente a
tremer, e a velha percebeu. Ele puxou as mÇos rapidamente.
NÇo vim aqui para ler as mÇos disse, j arrependido de ter entrado
naquela casa. Pensou por um momento que era melhor pagar a consulta e ir-se
embora sem saber de nada. Estava dando import×ncia demais a um sonho
repetido.
VocË veio saber de sonhos respondeu a velha. E os sonhos sÇo a
linguagem de Deus. Quando ele fala a linguagem do mundo, eu posso
interpretar. Mas se ele falar a linguagem de sua alma, sÕ vocË pode
entender. E vou cobrar a consulta de qualquer maneira.
Mais um truque, pensou o rapaz. Entretanto, resolveu arriscar. Um
pastor corre sempre o risco dos lobos ou da seca, e isto Ê que faz a
profissÇo de pastor mais excitante.
Tive o mesmo sonho duas vezes seguidas disse. Sonhei que estava
num pasto com minhas ovelhas quando aparecia uma crianÚa, e comeÚava a
brincar com os animais. NÇo gosto que mexam nas minhas ovelhas, elas ficam
com medo de estranhos. Mas as crianÚas sempre conseguem mexer com os animais
sem que eles se assustem. NÇo sei porquË. NÇo sei como os animais sabem a
idade dos seres humanos.
Volte para seu sonho disse a velha. Tenho uma panela no fogo.
AlÊm disso vocË tem pouco dinheiro e nÇo pode tomar todo o meu tempo.
A crianÚa continuava a brincar com as ovelhas por algum tempo
continuou o rapaz, um pouco constrangido. E de repente, me pegava pelas
mÇos e me levava atÊ as Pir×mides do Egito.
O rapaz esperou um pouco para ver se a velha sabia o que eram as
Pir×mides do Egito. Mas a velha continuou quieta.
EntÇo, nas Pir×mides do Egito, ele falou as trËs ßltimas palavras
lentamente, para que a velha pudesse entender bem a crianÚa me dizia: "se
vocË vier atÊ aqui, vai encontrar um tesouro escondido". E quando ela foi me
mostrar o local exato, eu acordei. Nas duas vezes.
A velha continuou em silËncio por algum tempo. Depois tornou a pegar as
mÇos do rapaz e estudÂ-las atentamente.
NÇo vou lhe cobrar nada agora disse a velha. Mas quero um dÊcimo do
tesouro, se vocË encontrÂ-lo.
O rapaz riu. De felicidade. EntÇo iria economizar o pouco dinheiro que
tinha, por causa de um sonho que falava em tesouros escondidos! A velha
devia ser mesmo uma cigana os ciganos sÇo burros.
EntÇo interprete o sonho pediu o rapaz.
Antes jure. Jure que vocË vai me dar a dÊcima parte do seu tesouro em
troca do que eu lhe disser.
O rapaz jurou. A velha pediu para que ele repetisse o juramento olhando
para a imagem do Sagrado CoraÚÇo de Jesus.
ê um sonho da Linguagem do Mundo disse ela. Posso interpretÂ-lo,
e Ê uma interpretaÚÇo muito difÎcil. Por isso acho que mereÚo minha parte no
seu achado.
"E a interpretaÚÇo Ê esta: vocË deve ir atÊ as Pir×mides do Egito.
Nunca ouvi falar delas, mas se foi uma crianÚa que lhe mostrou, Ê porque
existem. L vocË encontrar um tesouro que lhe far rico".
O rapaz ficou surpreso, e depois irritado. NÇo precisava ter procurado
a velha para isto.
Finalmente lembrou-se de que nÇo estava pagando nada.
Para isto eu nÇo precisava perder meu tempo disse.
Por isso lhe falei que seu sonho era difÎcil. As coisas simples sÇo
as mais extraordinÂrias, e sÕ os sÂbios conseguem vË-las. JÂ que nÇo sou uma
sÂbia, tenho que conhecer outras artes, como a leitura de mÇos.
E como eu vou chegar atÊ o Egito?
Eu sÕ interpreto sonhos. NÇo sei transformÂ-los em realidade. Por
isso tenho que viver do que minhas filhas me dÇo.
E se eu nÇo chegar atÊ o Egito?
Eu fico sem pagamento. NÇo ser a primeira vez.
E a velha nÇo disse mais nada. Pediu para que o rapaz saÎsse, pois jÂ
tinha perdido muito tempo com ele.
O rapaz saiu decepcionado e decidido a nunca mais acreditar em sonhos.
Lembrou-se de que tinha vÂrias providËncias a tomar: foi ao armazÊm arranjar
alguma comida, trocou seu livro por um livro mais grosso, e sentou-se num
banco da praÚa para saborear o vinho novo que havia comprado. Era um dia
quente, e o vinho, por um destes mistÊrios insondÂveis, conseguia resfriar
um pouco seu corpo. As ovelhas estavam na entrada da cidade, no estÂbulo de
um novo amigo seu. Conhecia muita gente por aquelas bandas e por isso
gostava de viajar. A gente sempre acaba fazendo amigos novos, e nÇo precisa
ficar com eles dia apÕs dia. Quando a gente vË sempre as mesmas pessoas e
isto acontecia no seminÂrio terminamos fazendo com que elas passem a fazer
parte de nossas vidas. E como elas fazem parte de nossas vidas, passam
tambÊm a querer modificar nossas vidas. Se a gente nÇo for como elas esperam
ficar, chateadas. Porque todas as pessoas tem a noÚÇo exata de como devemos
viver nossa vida.
E nunca tËm noÚÇo de como devem viver as suas prÕprias vidas. Como a
mulher dos sonhos, que nÇo sabia transformÂ-los em realidade.
Resolveu esperar o sol descer um pouco, antes de seguir com suas
ovelhas em direÚÇo ao campo. Daqui a trËs dias iria estar com a filha do
comerciante.
ComeÚou a ler o livro que tinha conseguido com o padre de Tarifa. Era
um livro grosso, que falava de um enterro logo na primeira pÂgina. AlÊm
disso, o nome dos personagens eram complicadÎssimos. Se algum dia escrevesse
um livro, pensou ele, ia colocar um personagem aparecendo de cada vez, para
que os leitores nÇo tivessem que ficar decorando nomes.
Quando conseguiu concentrar-se um pouco na leitura, e era boa, porque
falava de um enterro na neve, o que lhe transmitia uma sensaÚÇo de frio
debaixo daquele imenso sol um velho sentou-se ao seu lado e comeÚou a
puxar conversa.
O que eles estÇo fazendo? perguntou o velho, apontando para as
pessoas da praÚa.
Trabalhando respondeu o rapaz, secamente, e voltou a fingir que
estava concentrado na leitura. Na verdade, estava pensando em tosquiar as
ovelhas na frente da filha do comerciante, para ela atestar como ele era
capaz de fazer coisas interessantes. JÂ havia imaginado esta cena uma porÚÇo
de vezes; em todas elas, a menina ficava deslumbrada quando ele comeÚava a
lhe explicar que as ovelhas devem ser tosquiadas de trÂs para frente. TambÊm
tentava se lembrar de algumas boas histÕrias para contar a ela enquanto
tosquiava as ovelhas. A maior parte ele tinha lido nos livros, mas iria
contar como se tivesse vivido pessoalmente. Ela nunca ia saber a diferenÚa,
porque nÇo sabia ler livros.
O velho, entretanto, insistiu. Falou que estava cansado, com sede, e
pediu um gole de vinho ao rapaz. O rapaz ofereceu sua garrafa; talvez o
velho ficasse quieto.
Mas o velho queria conversar de qualquer maneira. Perguntou que livro o
rapaz estava lendo. Ele pensou em ser rude e mudar de banco, mas seu pai
havia lhe ensinado o respeito pelos mais velhos. EntÇo estendeu o livro para
o velho, por duas razÈes: a primeira Ê que nÇo sabia pronunciar o tÎtulo. E
a segunda era que, se o velho nÇo soubesse ler, ia ele mesmo mudar de banco
para nÇo sentir-se humilhado.
Humm... disse o velho, olhando o volume por todos os lados, como se
fosse um objeto estranho. ê um livro importante, mas Ê muito chato.
O rapaz ficou surpreso. O velho tambÊm lia, e j lera aquele livro. E
se o livro era chato como ele dizia, ainda dava tempo de trocar por outro.
ê um livro que fala o que quase todos os livros falam continuou o
velho. Da incapacidade que as pessoas tËm de escolher seu prÕprio destino.
E termina fazendo com que todo mundo acredite na maior mentira do mundo.
Qual Ê a maior mentira do mundo? indagou surpreso o rapaz.
ê esta: em determinado momento de nossa existËncia, perdemos o
controle de nossas vidas, e ela passa a ser governada pelo destino. Esta Ê a
maior mentira do mundo.
Comigo nÇo aconteceu isto disse o rapaz. Queriam que eu fosse
padre, e eu resolvi ser pastor.
Assim Ê melhor disse o velho. Porque vocË gosta de viajar.
"Ele adivinhou meu pensamento", refletiu o rapaz. O velho, entretanto,
folheava o livro grosso, sem a menor intenÚÇo de devolvË-lo. O rapaz notou
que ele vestia uma roupa estranha; parecia um Ârabe, o que nÇo era raro
naquela regiÇo. A âfrica ficava a apenas algumas horas da Tarifa; e era sÕ
cruzar o pequeno estreito num barco. Muitas vezes apareciam Ârabes na
cidade, fazendo compras e rezando oraÚÈes estranhas vÂrias vezes por dia.
De onde Ê o senhor? perguntou.
De muitas partes.
NinguÊm pode ser de muitas partes o rapaz falou. Eu sou um pastor
e estou em muitas partes, mas sou de um ßnico lugar, de uma cidade perto de
um castelo antigo. Ali foi onde nasci.
EntÇo podemos dizer que eu nasci em SalÊm.
O rapaz nÇo sabia onde era SalÊm, mas nÇo quis perguntar para nÇo
sentir- se humilhado com a prÕpria ignor×ncia. Ficou mais algum tempo
olhando a praÚa. As pessoas iam e vinham, e pareciam muito ocupadas.
Como est SalÊm? perguntou o rapaz, procurando alguma pista.
Como sempre esteve.
Ainda nÇo era uma pista. Mas sabia que SalÊm nÇo estava em Andaluzia.
SenÇo, ele j a teria conhecido.
E o que vocË faz em SalÊm? insistiu.
O que faÚo em SalÊm? o velho pela primeira vez deu uma gostosa
gargalhada. Ora, eu sou o Rei de SalÊm!
As pessoas dizem coisas muito estranhas, pensou o rapaz. ás vezes Ê
melhor estar com as ovelhas, que sÇo caladas, e apenas procuram alimento e
Âgua. Ou Ê melhor estar com os livros, que contam estÕrias incrÎveis sempre
nas horas que a gente quer ouvir. Mas quando a gente fala com pessoas, elas
dizem certas coisas e ficamos sem saber como continuar a conversa.
Meu nome Ê Melquisedec disse o velho. Quantas ovelhas vocË tem?
O suficiente respondeu o rapaz. O velho estava querendo saber
demais sobre sua vida.
EntÇo estamos diante de um problema. NÇo posso ajudÂ-lo enquanto vocË
achar que tem ovelhas suficientes.
O rapaz se irritou. NÇo estava pedindo ajuda. O velho Ê que tinha
pedido vinho, conversa, e livro.
Me devolva o livro disse. Tenho que ir buscar minhas ovelhas e
seguir adiante.
Me dË um dÊcimo de suas ovelhas disse o velho. E eu lhe ensino
como chegar atÊ o tesouro escondido.
O rapaz tornou entÇo a lembrar-se do sonho, e de repente tudo ficou
claro. A velha nÇo tinha cobrado nada, mas o velho que era talvez seu
marido ia conseguir arrancar muito mais dinheiro em troca de uma
informaÚÇo que nÇo existia. O velho devia ser cigano tambÊm.
Antes que o rapaz dissesse qualquer coisa, porÊm, o velho abaixou-se,
pegou um graveto, e comeÚou a escrever na areia da praÚa. Quando ele se
abaixou, alguma coisa brilhou dentro do seu peito, com tanta intensidade que
quase cegou o rapaz. Mas num movimento rÂpido demais para alguÊm de sua
idade, tornou a cobrir o brilho com o manto. Os olhos do rapaz voltaram ao
normal e ele pode enxergar o que o velho estava escrevendo.
Na areia da praÚa principal da pequena cidade, ele leu o nome do seu
pai e de sua mÇe.
Leu a histÕria de sua vida atÊ aquele momento, as brincadeiras de
inf×ncia, as noites frias do seminÂrio. Leu o nome da filha do comerciante,
que nÇo sabia. Leu coisas que jamais contara para alguÊm, como o dia em que
roubou a arma do seu pai para matar veados, ou sua primeira e solitÂria
experiËncia sexual.
"Sou o Rei de SalÊm", dissera o velho.
Por que um rei conversa com um pastor? perguntou o rapaz,
envergonhado e admiradÎssimo.
Existem vÂrias razÈes. Mas vamos dizer que a mais importante Ê que
vocË tem sido capaz de cumprir sua Lenda Pessoal.
O rapaz nÇo sabia o que era Lenda Pessoal.
ê aquilo que vocË sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no comeÚo
da juventude, sabem qual Ê sua Lenda Pessoal.
"Nesta altura da vida, tudo Ê claro, tudo Ê possÎvel, e elas nÇo tËm
medo de sonhar e desejar tudo aquilo que gostariam de ver fazer em suas
vidas. Entretanto, Á medida em que o tempo vai passando, uma misteriosa
forÚa comeÚa a tentar provar que Ê impossÎvel realizar a Lenda Pessoal.
O que o velho estava dizendo nÇo fazia muito sentido para o rapaz. Mas
ele queria saber o que eram "forÚas misteriosas"; a filha do comerciante ia
ficar boquiaberta com isto.
SÇo as forÚas que parecem ruins, mas na verdade estÇo ensinando a
vocË como realizar sua Lenda Pessoal. EstÇo preparando seu espÎrito e sua
vontade, porque existe uma grande verdade neste planeta: seja vocË quem for
ou o que faÚa, quando quer com vontade alguma coisa, Ê porque este desejo
nasceu na alma do Universo. ê sua missÇo na Terra.
Mesmo que seja apenas viajar? Ou casar com a filha de um comerciante
de tecidos?
Ou buscar um tesouro. A Alma do Mundo Ê alimentada pela felicidade
das pessoas. Ou pela infelicidade, inveja, cißme. Cumprir sua Lenda Pessoal
Ê a ßnica obrigaÚÇo dos homens. Tudo Ê uma coisa sÕ.
"E quando vocË quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que
vocË realize seu desejo".
Durante algum tempo ficaram em silËncio, olhando a praÚa e as pessoas.
Foi o velho quem falou primeiro.
Por que vocË cuida de ovelhas?
Porque gosto de viajar.
Ele apontou um pipoqueiro, com sua carrocinha vermelha, que estava num
canto da praÚa.
Aquele pipoqueiro tambÊm sempre desejou viajar, quando crianÚa. Mas
preferiu comprar uma carrocinha de pipoca, juntar dinheiro durante anos.
Quando estiver velho, vai passar um mËs na âfrica. Jamais entendeu que a
gente sempre tem condiÚÈes para fazer o que sonha.
Devia ter escolhido ser um pastor pensou em voz alta o rapaz.
Ele pensou nisto disse o velho. Mas os pipoqueiros sÇo mais
importantes que os pastores. Os pipoqueiros tËm uma casa, enquanto os
pastores dormem ao relento. As pessoas preferem casar suas filhas com
pipoqueiros do que com pastores.
O rapaz sentiu uma pontada no coraÚÇo, pensando na filha do
comerciante. Em sua cidade devia haver um pipoqueiro.
Enfim, o que as pessoas pensam sobre pipoqueiros e sobre pastores
passa a ser mais importante para elas que a Lenda Pessoal.
O velho folheou o livro, e distraiu-se lendo uma pÂgina. O rapaz
esperou um pouco, e o interrompeu da mesma maneira como ele o havia
interrompido.
Por que vocË fala estas coisas comigo?
Porque vocË tenta viver sua Lenda Pessoal. E est a ponto de desistir
dela.
E vocË aparece sempre nestas horas?
Nem sempre desta forma, mas jamais deixei de aparecer. ás vezes
apareÚo sob a forma de uma boa saÎda, uma boa idÊia. Outras vezes, num
momento crucial, faÚo as coisas ficarem mais fÂceis. E assim por diante; mas
a maior parte das pessoas nÇo nota isto.
O velho contou que na semana passada ele tinha sido forÚado a aparecer
para um garimpeiro sob a forma de uma pedra. O garimpeiro tinha largado tudo
para ir em busca de esmeraldas. Durante cinco anos trabalhou num rio, e
tinha quebrado 999.999 pedras em busca de uma esmeralda. Neste ponto o
garimpeiro pensou em desistir, e sÕ faltava uma pedra apenas UMA PEDRA
para ele descobrir sua esmeralda. Como ele tinha sido um homem que havia
apostado em sua Lenda Pessoal, o velho resolveu interferir. Transformou-se
numa pedra que rolou sobre o pÊ do garimpeiro. Este, com a raiva e
frustraÚÇo dos cinco anos perdidos, atirou a pedra longe. Mas atirou com
tanta forÚa que ela bateu em outra pedra e esta se quebrou, mostrando a mais
bela esmeralda do mundo.
As pessoas aprendem muito cedo sua razÇo de viver disse o velho com
uma certa amargura nos olhos. Talvez seja por isso que elas desistem tÇo
cedo tambÊm. Mas assim Ê o mundo.
EntÇo o rapaz se lembrou que a conversa havia comeÚado com o tesouro
escondido.
Os tesouros sÇo levantados da terra pela torrente de Âgua, e
enterrados por estas mesmas enchentes disse o velho. Se vocË quiser
saber sobre seu tesouro, ter que me ceder um dÊcimo de suas ovelhas.
E nÇo serve um dÊcimo do tesouro?
O velho ficou decepcionado.
Se vocË sair prometendo o que ainda nÇo tem, vai perder sua vontade
de consegui-lo.
O rapaz entÇo contou que tinha prometido um dÊcimo Á cigana.
Os ciganos sÇo espertos suspirou o velho. De qualquer maneira Ê
bom vocË aprender que tudo na vida tem um preÚo. ê isto que os Guerreiros da
Luz tentam ensinar.
O velho devolveu o livro ao rapaz.
AmanhÇ, nesta mesma hora, vocË me traz um dÊcimo de suas ovelhas. Eu
lhe ensinarei como conseguir o tesouro escondido. Boa tarde.
E sumiu numa das esquinas da praÚa.
O rapaz tentou ler o livro, mas nÇo conseguiu concentrar-se mais.
Estava agitado e tenso, porque sabia que o velho falava a verdade. Foi atÊ o
pipoqueiro, comprou um saco de pipocas, enquanto pensava se devia ou nÇo
contar a ele o que o velho dissera. "ás vezes Ê melhor deixar as coisas como
estÇo", pensou o rapaz, e ficou quieto. Se dissesse algo, o pipoqueiro ia
ficar trËs dias pensando em largar tudo, mas estava muito acostumado com sua
carrocinha.
Ele podia evitar este sofrimento ao pipoqueiro. ComeÚou a andar sem
rumo pela cidade, e foi atÊ o porto. Havia um pequeno prÊdio, e no prÊdio
havia uma janelinha onde as pessoas compravam passagens. O Egito estava na
âfrica.
Quer alguma coisa? perguntou o sujeito no guichË.
Talvez amanhÇ disse o rapaz se afastando. Se vendesse apenas uma
ovelha podia chegar atÊ o outro lado do estreito. Era uma idÊia que o
apavorava.
Mais um sonhador disse o sujeito do guichË ao seu assistente,
enquanto o rapaz se afastava. NÇo tem dinheiro para viajar.
Quando estava no guichË, o rapaz havia se lembrado de suas ovelhas, e
sentiu medo de voltar para junto delas. Dois anos haviam passado aprendendo
tudo sobre a arte do pastoreio; sabia tosquiar, cuidar das ovelhas grÂvidas,
proteger os animais contra os lobos. Conhecia todos os campos e pastos de
Andaluzia. Conhecia o preÚo justo de comprar e vender cada um dos seus
animais.
Resolveu voltar atÊ o estÂbulo de seu amigo pelo caminho mais longo. A
cidade tambÊm tinha um castelo, e ele resolveu subir a rampa de pedra e
sentar-se numa de suas muradas. LÂ de cima ele podia ver a âfrica. AlguÊm
certa vez havia lhe explicado que por ali chegaram os mouros, que ocuparam
durante tantos anos quase toda a Espanha. O rapaz detestava os mouros. Eles
Ê que tinham trazido os ciganos.
De l podia ver tambÊm quase toda a cidade, inclusive a praÚa onde
havia conversado com o velho.
"Maldita hora em que encontrei este velho", pensou ele. Tinha ido
apenas buscar uma mulher que interpretasse sonhos. Nem a mulher nem o velho
davam qualquer import×ncia para o fato de que ele era um pastor. Eram
pessoas solitÂrias, que j nÇo acreditavam mais na vida, e nÇo entendiam que
os pastores terminam apegados Ás suas ovelhas. Ele conhecia em detalhes cada
uma delas: sabia qual mancava, qual iria dar cria daqui a dois meses, e
quais eram as mais preguiÚosas. Sabia tambÊm como tosquiÂ-las, e como
matÂ-las. Se resolvesse partir, elas sofreriam.
Um vento comeÚou a soprar. Ele conhecia aquele vento: as pessoas o
chamavam de Levante, porque com este vento chegaram tambÊm as hordas de
infiÊis. AtÊ conhecer Tarifa, nunca havia pensado que a âfrica estava tÇo
perto. Isto era um grande perigo: os mouros poderiam invadir novamente.
O Levante comeÚou a soprar mais forte. "Estou entre as ovelhas e o
tesouro", pensava o rapaz. Tinha que decidir-se entre alguma coisa que havia
se acostumado e alguma coisa que gostaria de ter. Havia tambÊm a filha do
comerciante, mas ela nÇo era tÇo importante como as ovelhas, porque nÇo
dependia dele. Talvez sequer se lembrasse dele. Teve certeza de que, se nÇo
aparecesse daqui a dois dias, a menina nÇo iria notar: para ela todos os
dias eram iguais, e quando todos os dias ficam iguais, Ê porque as pessoas
deixaram de perceber as coisas boas que aparecem em suas vidas sempre que o
sol cruza o cÊu.
"Eu larguei meu pai, minha mÇe, e o castelo da minha cidade. Eles se
acostumaram e eu me acostumei. As ovelhas tambÊm vÇo se acostumar com a
minha falta", pensou o rapaz.
De l de cima ele olhou a praÚa. O pipoqueiro continuava vendendo suas
pipocas. Um jovem casal sentou-se no banco onde ele havia conversado com o
velho, e deram um longo beijo.
"O pipoqueiro", disse para si mesmo, sem completar a frase. Porque o
Levante havia comeÚado a soprar com mais forÚa, e ele ficou sentindo o vento
no rosto. Ele trazia os mouros, Ê verdade, mas tambÊm trazia o cheiro do
deserto e das mulheres cobertas com vÊu. Trazia o suor e os sonhos dos
homens que um dia haviam partido em busca do desconhecido, de ouro, de
aventuras e de pir×mides. O rapaz comeÚou a invejar a liberdade do vento,
e percebeu que poderia ser como ele. Nada o impedia, exceto ele prÕprio. As
ovelhas, a filha do comerciante, os campos de Andaluzia, eram apenas os
passos de sua Lenda Pessoal.
No dia seguinte o rapaz encontrou-se com o velho ao meio-dia. Trazia
seis ovelhas consigo.
Estou surpreso disse ele. Meu amigo comprou imediatamente as
ovelhas. Disse que a vida inteira havia sonhado em ser pastor, e aquilo era
um bom sinal.
ê sempre assim disse o velho. Chamamos de PrincÎpio FavorÂvel. Se
vocË for jogar baralho pela primeira vez, com quase toda certeza ir ganhar.
Sorte de principiante.
E por que?
Porque a vida quer que vocË viva sua Lenda Pessoal.
Depois comeÚou a examinar as seis ovelhas, e descobriu que uma mancava.
O rapaz explicou que isto nÇo tinha import×ncia, porque ela era a mais
inteligente, e produzia bastante lÇ.
Onde est o tesouro? perguntou.
O tesouro est no Egito, perto das Pir×mides.
O rapaz levou um susto. A velha tinha dito a mesma coisa, mas nÇo tinha
cobrado nada.
Para chegar atÊ ele, vocË ter que seguir os sinais. Deus escreveu no
mundo o caminho que cada homem deve seguir. ê sÕ ler o que ele escreveu para
vocË.
Antes que o rapaz dissesse alguma coisa, uma mariposa comeÚou a
esvoaÚar entre ele e o velho. Lembrou-se de seu avÆ; quando ele era crianÚa,
seu avÆ lhe dissera que as mariposas eram sinal de boa sorte. Como os
grilos, as esperanÚas, as lagartixas, e os trevos de quatro folhas.
Isto disse o velho, que era capaz de ler seus pensamentos.
Exatamente como seu avÆ lhe ensinou. Estes sÇo os sinais.
Depois o velho abriu o manto que lhe cobria o peito. O rapaz ficou
impressionado com o que viu, e lembrou-se do brilho que havia notado no dia
anterior. O velho tinha um peitoral de ouro maciÚo, coberto de pedras
preciosas.
Era realmente um rei. Devia estar disfarÚado assim para fugir dos
salteadores.
Tome disse o velho, tirando uma pedra branca e uma pedra negra que
estavam presas no centro do peitoral de ouro. Chamam-se Urim e Tumim. A
preta quer dizer "sim", a branca quer dizer "nÇo". Quando vocË nÇo conseguir
enxergar os sinais, elas servem. FaÚa sempre uma pergunta objetiva.
"Mas de uma maneira geral, procure tomar suas decisÈes. O tesouro estÂ
nas Pir×mides e isto vocË j sabia; mas teve que pagar seis ovelhas porque
eu lhe ajudei a tomar uma decisÇo".
O rapaz guardou as pedras no alforje . Daqui por diante, tomaria suas
prÕprias decisÈes.
NÇo se esqueÚa de que tudo Ê uma coisa sÕ. NÇo se esqueÚa da
linguagem dos sinais. E, sobretudo, nÇo se esqueÚa de ir atÊ o fim de sua
Lenda Pessoal.
"Antes, porÊm, gostaria de contar-lhe uma pequena histÕria.
"Certo mercador enviou seu filho para aprender o Segredo da Felicidade
com o mais sÂbio de todos os homens. O rapaz andou durante quarenta dias
pelo deserto,
atÊ chegar a um belo castelo, no alto de uma montanha. LÂ vivia o SÂbio
que o rapaz buscava.
"Ao invÊs de encontrar um homem santo, porÊm, o nosso herÕi entrou numa
sala e viu uma atividade imensa; mercadores entravam e saÎam, pessoas
conversavam pelos cantos, uma pequena orquestra tocava melodias suaves, e
havia uma farta mesa com os mais deliciosos pratos daquela regiÇo do mundo.
O SÂbio conversava com todos, e o rapaz teve que esperar duas horas atÊ
chegar sua vez de ser atendido.
"O SÂbio ouviu atentamente o motivo da visita do rapaz, mas disse-lhe
que naquele momento nÇo tinha tempo de explicar-lhe o Segredo da Felicidade.
Sugeriu que o rapaz desse um passeio por seu palÂcio, e voltasse daqui a
duas horas.
" Entretanto, quero lhe pedir um favor completou o SÂbio, entregando
ao rapaz uma colher de chÂ, onde pingou duas gotas de Õleo. Enquanto vocË
estiver caminhando, carregue esta colher sem deixar que o Õleo seja
derramado.
"O rapaz comeÚou a subir e descer as escadarias do palÂcio, mantendo
sempre os olhos fixos na colher. Ao final de duas horas, retornou Á presenÚa
do SÂbio.
" EntÇo perguntou o SÂbio vocË viu as tapeÚarias da PÊrsia que
estÇo na minha sala de jantar? Viu o jardim que o Mestre dos Jardineiros
demorou dez anos para criar? Reparou nos belos pergaminhos de minha
biblioteca?
"O rapaz, envergonhado, confessou que nÇo havia visto nada. Sua ßnica
preocupaÚÇo era nÇo derramar as gotas de Õleo que o SÂbio lhe havia
confiado.
" Pois entÇo volte e conheÚa as maravilhas do meu mundo disse o
SÂbio. VocË nÇo pode confiar num homem se nÇo conhece sua casa.
"JÂ mais tranqØilo, o rapaz pegou a colher e voltou a passear pelo
palÂcio, desta vez reparando em todas as obras de